Leituras do dia (05/03/14): Jl 2, 12-18
Sl 50 (51), 3-6a. 12-14.17
2Cor 5, 20-6,2
Mt 6, 1-6. 16-18
A Liturgia de hoje nos convida a
refletir sobre o significado da Quaresma. A celebração litúrgica da
Quarta-Feira de Cinzas, em especial, nos leva a uma reflexão sobre os frutos
espirituais oriundos da prática dos elementos típicos deste tempo: o
arrependimento e as ações práticas expressas no jejum, oração e penitência.
Tanto o livro de Joel quanto o salmo
50 (uma das mais belas e profundas orações de arrependimento), nos remete ao
sentido espiritual do arrependimento. Arrepender-se não é se culpar. Mas uma
conscientização profunda de que sem o Senhor nada poderemos fazer. O profeta
Joel trabalha com as figuras do coração e das vestes. “rasgai o vosso coração e
não as vossas vestes” (Jl 2,13), estas são as palavras do profeta. O rasgar as
vestes representa o trato humano do conceito de arrependimento, isto é, ligado à
culpa. O homem sem Deus, quando se arrepende, se culpa, porque ele não possui
um refúgio, um lugar seguro. A condição humana é marcada pela competitividade.
Ou seja, trata-se do erro e de suas consequências como culpa para que este
mesmo sujeito seja visto como alguém inutilizado ou inutilizável, descartado,
marginalizado, enfim, irrecuperável, pois a lógica humana sugere a
impossibilidade, seja de cura, seja de libertação, seja de restauração. Os
contextos cultural, político e econômico de nossos dias estimulam nas pessoas o
espírito competitivo e, por isso, o nosso emocional é condicionado a apontar o
dedo para o outro e para nós mesmos às vezes, como um mecanismo de exclusão. O
homem, quando rasga as vestes, torna-se juiz de si mesmo e dos outros. Na
cultura judaica, o ancião, diante de uma blasfêmia proferida contra Deus,
rasgava as suas vestes em sinal de repúdio. A culpa, portanto, gera o repúdio e
pelo repúdio, são gerados todos os mecanismos de exclusão já acima descritos.
Rasgar o coração significa implorar pela
misericórdia de Deus. Se a condição humana, com o seu espírito competitivo, se
fundamenta na culpa e repúdio, a condição de Deus, ou seja, a sua justiça, é a
misericórdia. Ela não pode coexistir com a culpa, pois a própria culpa sugere o
fechamento do coração dada a sugestão da irreversibilidade. A misericórdia
pressupõe reversibilidade, restauração, ressurreição, o trazer de volta à vida,
porque para Deus nada é impossível! Portanto, não devemos olhar para nós mesmos
como um caso encerrado, pois somente Deus pode nos resgatar; e a boa notícia é
que o Senhor quer nos trazer de volta à vida! Por isso, como nos manda o
profeta Joel, rasguemos o nosso coração, isto é, abramo-nos inteiramente,
completamente a Ele, pois os efeitos da Graça divina se verificam no coração
que se abre e não nas vestes rasgadas da culpa e do repúdio. Ainda que vossos pecados subam da terra até
o céu, ainda que sejam mais vermelhos que o escarlate e mais negros que o
silício, se voltardes para mim de todo o coração e disserdes “Pai”, eu vos
tratarei como um povo santo e ouvirei as vossas súplicas (Is 1,18).
Os frutos e a beleza da misericórdia
são objetos de meditação do salmo 50. Como o saudoso padre Léo costumava dizer:
“esta é uma das mais belas orações de perdão que deveria ser recomendada por
todos os padres no momento da confissão dos fiéis”. Neste salmo Davi, depois de
ter se arrependido profundamente do pecado do adultério seguido de morte,
compõe este salmo. Logo no começo ele diz: “tende piedade de mim Senhor,
segundo a vossa bondade. E conforme a imensidão de vossa misericórdia, apagai a
minha iniquidade”. A misericórdia tem como um grande efeito o amor do Deus
fiel, que quer nos tratar como santos e irrepreensíveis e, pela Sua
misericórdia, ele quer esquecer os nossos pecados. Mas, o requisito fundamental
é o arrependimento, o rasgar o coração, permitir afinal que Deus aja profundamente
em nossas vidas a ponto de nós não desejarmos mais o pecado e querermos andar
na presença do Senhor. Os versículos 5 e 8 do salmo 50 confirmam: “eu reconheço
a minha iniquidade, diante de mim está sempre o meu pecado; Vós amais a
sinceridade do vosso coração. Infundi-me, pois, a sabedoria no mais íntimo de
mim”. O desejo ardente de andar na Graça de Deus tem como efeito a sabedoria.
Tanto para os antigos filósofos gregos, como Sócrates e os Helênicos
(epicuristas e estóicos) como para a cultura judaico-cristã, ser sábio não é
apenas ser capaz de construir grandes estruturas de pensamento; mas é antes de
tudo saber agir corretamente. É isso que Davi pede: saber agir corretamente,
pois ele quer ter novamente como sua referência a própria Graça de Deus. Aquele
que anda na presença de Deus não erra, não se desvia.
“Criai em mim um coração que seja
puro, dai-me de novo um espírito decidido” é o que está no versículo 12. A
misericórdia nos traz de novo à vida! Depois de sermos lavados, somos trazidos
de volta. Dai-nos Senhor de novo um espírito decidido. A fortaleza do coração
que anseia andar na presença de Deus e, portanto, ser santo. E, ao longo do
salmo, Davi vai pronunciando palavras como: “lavai-me
dos meus pecados”, “o meu sacrifício
é minha alma penitente e um coração contrito”, enfim, palavras inspiradas
que sugerem a relação harmônica entre arrependimento, misericórdia e nova
conduta.
A segunda carta de Paulo aos coríntios
pode ser lida em consonância com o próprio Evangelho. Nela São Paulo nos exorta
à conversão mediante o testemunho e a ação. “hoje é o tempo favorável, agora é
dia da Salvação” (2Cor 6,2). O arrependimento e a ação misericordiosa de Deus
em nós deve ser motivação para a prática da penitência, do jejum e da oração. É
como se o apóstolo quisesse dizer: “agi, pois o Senhor está próximo!” O
Evangelho trata exatamente dessa prática que tem como fruto perfeito a nossa
Salvação. A prática perfeita do jejum da caridade e da penitência é aquela que
agrada a Deus e não aos homens. Cristo é bem claro: “que a tua mão esquerda não
saiba o que a direita faz” (Mt 6,3); “o teu Pai que está oculto te dará a sua
recompensa”(Mt 6, 4). A caridade não é vaidosa e nem se vangloria dos louvores
dos homens, mas busca a glória de Deus. Se fizermos algo para o próximo em
função de um interesse ou desejo de se beneficiar, isto se chamará hipocrisia.
Aqui funciona o conceito ético do dever kantiano. Para o filósofo alemão
Immanuel Kant (1724-1804), a ação eticamente perfeita é praticada por dever e
não por interesse ou inclinação. O dom da caridade, do jejum e da penitência
tem origem no Senhor e os frutos de tais práticas devem ser oferecidos a Ele
como sacrifício agradável. É claro que o próximo é quem se beneficia dessas
ações evangélicas, mas a recompensa deve ser dada pelo Senhor, sem alarde. É
Ele, que sonda os nossos corações, sabe do que precisamos; Ele dá aquilo que
para nós é necessário. Podemos encerrar esta meditação afirmando que o
exercício perfeito da quaresma é aquele no qual a pessoa está intimamente
ligada com Deus e anda nos Seus caminhos. Com o Senhor, temos condições de
suportar tribulações, tentações. A quaresma, por sugerir a prática espiritual
perfeita e que rende para nós a Salvação de nossas almas, é o período no qual
se quadruplicam as ações do inimigo, no sentido de fazer perder as nossas
almas. É o período em que o Senhor nos convida a nos desapegarmos dos nossos
“pecados de estimação” e oferece-los a Ele para que nos livre da dependência de
tais pecados. A Igreja sugere que façamos o firme propósito, com a ajuda da
Graça de Deus e a exemplo de Cristo, de jejuar, orar e praticar a penitência. É
o momento de nos conscientizarmos de que o tempo está próximo e se faz
necessário o arrependimento e a conversão, elementos necessários para tomarmos
posse da nossa Salvação. Cristo Vive, Cristo Reina, Cristo Impera. Amém!